O FÓSSIL INDISCRETO
Salvador Dali, obra New-Man (foto)
*Joel Pires
A casa precisava de limpeza. Mas, como todos os demais projetos, esse também foi adiado. As coisas se acumulavam. Era preciso uma grande faxina. Ratos habitavam o lugar. Baratas conviviam furtivamente. Decidiu-se pela assepsia geral. O ambiente foi então desvitalizado. Tudo clean. A história foi varrida daquele espaço. Mudaram-se as pessoas. Os móveis, retirados. Alvejantes removeram quase todas as marcas, não fosse um vestígio antigo. Uma aranha permaneceu, a certa altura, pendurada na luminária. Estava lá, há milhões de anos, o ser suspenso no vão do corredor. Pré-histórico. Todos os dias, o novo inquilino passava pelo estranho objeto decorativo. O móbile fúnebre denunciava algo. Mas era só um aracnidiozinho seco, inerte. Quase invisível. Sem ser notado, o cadáver permaneceu no ambiente por seis dias. No sábado, o contraste foi percebido. A morte sem renovação. O fóssil indiscreto. A vida que, levada pelo vento, povoou continentes, desafiou impérios, atravessou cataclismos e cessou no cloro do desinfetante.
Por Joel Pires - Professor, Psicopedagogo e colaborador do Jornal de Sobradinho / foto Google Images
3 comentários
Interessante. Gostei.
Um grande abraço,
Átila Siqueira.
O texto é bacana demais, e a imagem da tela do Dalí....arremata totalmente o pensamento do autor...lindo!!!!
Pedro Zacarias
Cru e transcendente. Gostei.
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