COLUNA TEXTOS E TEXTOS : UMA ROUPAGEM DIFERENTE PARA UMA PAISAGEM COMUM
* Geraldo Lima
Estava
zapeando entre a mirÃade de canais pagos (uma vasta programação de obras
inaproveitáveis), quando esbarrei numa imagem que logo me chamou a atenção: uma
moça debruçada sobre o balcão de um café, o rosto apoiado ali, de lado, e na
sequência um outro rosto que vai se aproximando dela, em busca da sua boca, cobrindo-a
como num eclipse, até que a tela se escurece inteira num fade-out. Corta
para uma rua, uma esquina, noite, e lá está a moça na calçada observando um
casal que se movimenta num apartamento. Ela deixa claro que aquela visão a
desagrada, faz meia-volta e desaparece.
Peguei o
filme já em andamento, não dava para saber quem era o diretor, sabia apenas que
o tÃtulo era “Um beijo roubado”, mas já havia percebido que, embora os atores e
atrizes fossem norte-americanos (Jude Law, David Strathaim, Rachel Weisz, a
cantora Norah Jones!..., e todos atuando magistralmente), a estética destoava
muito daquela que comumente vemos nos filmes de Hollywood. A fotografia,
marcada por um colorido intenso, lembrava em alguns momentos a pintura de Andy
Warhol e enchia os olhos de cor. Imagens em alta velocidade alternando-se
com outras em câmera lenta, os gestos das personagens explorados nos mÃnimos detalhes
(a mão que ergue o copo de bebida, o olhar embriago) dando à cena uma densidade
perturbadora. Frenesi e calma, ruÃdos e silêncios. Não havia dúvida de que a
história se passava nos Estados Unidos, pois os ambientes e os
personagens eram tÃpicos desse paÃs: as ruas de Nova Iorque, o bar de uma
cidade de interior com sua clientela tÃpica, a garçonete, depois Las Vegas, os
cassinos, os jogadores de pôquer etc. etc. Porém a estética, estava bem claro,
não tinha nada a ver com Hollywood!
Ao final,
quando os créditos começaram a subir, pude constatar que a minha desconfiança
tinha razão de ser. O diretor chinês Wong Kar-Wai (ou Kar-Wai Wong), com
seu olhar oriental e singular, conseguiu dar nova roupagem a toda uma
temática comum nos filmes hollywoodianos.
Constatei, no entanto, que a crÃtica,
à época de lançamento do filme, desancou essa obra do diretor de “Amor à flor
da pele”. O que descontentou os crÃticos foi exatamente o fato de Wong Kar-Wai
ter colocado em cena espaços e situações já muito explorados pelo cinema de
Hollywood. Mas me parece que a intenção do diretor de “Um beijo roubado” (My
Blueberry Nights - China, França, Hong Kong, 2007) foi exatamente este: dar
a esse cenário tão comum nos filmes norte-americanos uma estética diferente,
delirante em alguns momentos, próxima às vezes de um certo experimentalismo.
Não se trata de um olhar estrangeiro interessado em criticar o American way
of life. Mostra-se ali uma história de decepção amorosa, de crise
existencial, de busca de novo sentido para a vida, de reencontro e de recomeço.
O enredo não é complicado, mas se estrutura de modo a nos dar uma visão ampla e
densa sobre as relações humanas, e isso vale tanto para a terra de Tio Sam
quanto para qualquer outra.
* Geraldo Lima é
professor, escritor, dramaturgo, roteirista e colabora com o Jornal de Sobradinho.
Nenhum comentário
Postar um comentário