ARTE & CULTURA
Conversa animada com o bom
e velho Vladimir Carvalho
Figura emblemática do
cinema brasileiro e do DF, documentarista de 84 anos encerra a 52ª edição do
Festival de Brasília, neste sábado (30), celebrando cinco décadas de
convivência com a cidade
No final dos
anos 60, Vladimir Carvalho comia o pão que o diabo amassou, no Rio de Janeiro.
Então com dois curtas-metragens nas costas – Romeiros (1962) e A Bolandeira
(1967) –, ele sobrevivia com os vales de repórter do Diário de Notícias,
morando numa casa de cômodo, no bairro de Santa Teresa, com a mulher. Foi
quando recebeu o convite para dar aula na Universidade de Brasília (UnB). “Vim,
olhei para Brasília e achei a cidade fria, fria, no sentido metafórico”,
lembra. “Voltei para o Rio, as contas todas atrasadas, então propus ficar só
dois meses. Acabei me casando com a cidade. Já faz exatos 50 anos!”, ri,
surpreso.
Um dos nomes
mais importantes do cinema brasileiro e figura essencial para a cinematografia
brasiliense, o documentarista de 84 anos encerra neste sábado (30), às 19h, a
52ª edição do Festival de Brasília, apresentando seu mais recente projeto,
Giocondo Dias – Ilustre Clandestino. Antes, nesta sexta-feira (29), às 19h,
lança no hall do Cine Brasília, o DVD de Cícero Dias, o Compadre de Picasso.
“Giocondo é um filme em tom menor, sobre um homem que marcou minha infância a
partir dos relatos do meu pai. Um sujeito que tinha o dom do diálogo, tema
atual”, reflete.
Dono de
memória prodigiosa e lucidez invejável, a trajetória desse paraibano de voz de
profeta e simpatia sem fim, se confunde com a parte da história do cinema
nacional e os primeiros anos da capital, quando ainda se ouvia, por aqui, o
baticum das obras. Chamado pelo cineasta baiano, Glauber Rocha, de o “Vertov da
caatinga” – documentarista experimental russo do início do século passado –,
Vladimir foi um dos pioneiros da sua arte na Paraíba, flertou com a turma do
Cinema Novo e sentiu o peso dos anos de chumbo da ditadura nos ombros, quando
seu primeiro longa-metragem, O País de São Saruê, foi limado do Festival, em
1971. O episódio acarretaria na interdição do evento por três longos anos.
“Comecei esse projeto em 1966, ali procuro recompor as relações de classe na
relação entre os donos de terras e os camponeses”, lembra.
Em conversa,
numa manhã tranquila, ele falou de sua relação com a cidade e o mais importante
e tradicional festival de cinema do país; dos tempos de UnB; de quando foi
assistente do documentarista Eduardo Coutinho; de sua relação com o cineasta
Arnaldo Jabor; e do dia em que viu o diretor de cinema polonês Roman Polanski,
na beira da piscina do Copacabana Palace Hotel, pedindo para ver os ensaios da
escola de samba Mangueira e um jogo de futebol do Flamengo. “Também vi o
(cineasta alemão) Fritz Lang de perto e o ator Glenn Ford (o astro do filme
Gilda, de 1946), passeando de óculos ray ban”, recorda.
Giocondo Dias
Ouvi falar
de Giocondo Dias pela primeira vez, mencionado pelo meu pai, que era militante
do partido comunista. Isso nos anos 40. Eu nasci em 1935. Era, de certa forma,
uma maneira de descobrir o meu pai como uma pessoa que estava ligado no mundo,
embora morasse numa cidade do interior (Itabaiana, Paraíba). Então, em 1935, o
Giocondo, cabo do exército, fez parte da Intentona Comunista (tentativa de
golpe contra o governo de Getúlio Vargas por militares, com apoio do Partido
Comunista Brasileiro). Um movimento que estourou meio desconectado, no Rio de
Janeiro, e, depois, em Recife e São Paulo. O Giocondo tinha prestígio junto aos
seus comandados, já com ideias revolucionárias. Ele foi a um quartel, em Natal,
no Rio Grande de Norte, e prendeu o comandante do lugar em nome do Luís Carlos
Prestes (líder comunista). Uma bravata! (ri). Nessa confusão, foi ferido a
tiros. Milagrosamente, fizeram a cirurgia e ele sobreviveu. Ele andou em
comícios onde foi atingido novamente. Levado para o hospital, foi novamente
operado. A partir dessa experiência de vida, e isso é uma interpretação minha
do que vem depois, ele se tornou um ferrenho defensor de posições que
eliminavam qualquer coisa no partido que fosse realizado pelas armas. Daí o
slogan do filme – “Adeus às armas, apelo ao diálogo”. É um tema muito atual. O
Giocondo construiu isso na clandestinidade.
O dom do diálogo
Giocondo foi
um cara importante. Não era um intelectual. Era um militante que tinha o dom do
diálogo, que pregava, dentro do Partido comunista, a revolução não pelas armas,
mas a partir de uma boa conversa. Foi um personagem que encarnou essa posição.
Ele tinha uma frase: “Vamos discutir essa discordância”. Ia conversando de
pouquinho e pouquinho, diminuindo a discordância. Redescobri ele e meio que me
apaixonei pela sua figura.
O filme
Eu tenho
essa posição, talvez um tanto idealista, de não fazer nada de encomenda. Então,
assumi a produção desse filme e fiquei dois anos ralando. É um perfil em
segunda-mão porque é visto pelos raros contemporâneos do Giocondo Dias.
Encontro com o personagem
Eu tive a
oportunidade de vê-lo porque também militei no partido, quase que por causa do
meu pai. Ele ficou uma pequena temporada em Brasília, em 1983 e 1984, onde foi
de gabinete em gabinete tratar da legalidade do partido. Era algo praticamente
previsto porque a gente estava em plena redemocratização, a volta do Estado de
Direito. E o conheci de vista. Apertamos as mãos, já sabia da importância dele.
Essa referência e atuação dele sempre me nortearam. Segui muito essa
orientação, de trilhar pela democracia. Primar pelas vias democráticas.
Arqueólogo do cinema
É uma
circunstância minha. Eu sempre cheguei depois dos acontecimentos. Saí da
Paraíba e fui para Salvador, atraído pelo Cinema Novo. O Glauber Rocha estava
surgindo no cenário, o Roberto Pires – que viveu um tempo aqui em Brasília –,
também. Quando chego lá o movimento foi amainando, com as principais cabeças
indo embora. Depois o (Eduardo) Coutinho (documentarista) me chamou para ser
assistente dele em Cabra Marcado para Morrer (1964) e veio o Golpe. Vou para o
Rio, e o que acontece? O Cinema Novo estava se desmilinguindo porque a ditadura
estava instalada, acabando aquela geração que fez o movimento acontecer. Daí,
venho para Brasília, em 1969, convidado a dar aula na UnB. O curso de cinema
acabara havia cinco anos. Estou sempre atrás dessa memória. E isso é uma
dificuldade muito grande porque o Brasil não preserva a memória audiovisual.
Para fazer qualquer filme que precise recorrer a momentos históricos você vai
aos arquivos e não encontra muita coisa.
Polanski na piscina do Copacabana
Palace
Depois de
ser assistente do (Eduardo) Coutinho, fui trabalhar com o (Arnaldo) Jabor na
cobertura do Festival Internacional do Filme (FIF), que teve apenas duas
edições e que resultou num filme dele chamado Rio, Capital do Cinema. Um mês
depois, ele faria o curta Opinião Pública (1967). Era um festival para promover
o Rio e os artistas convidados ganhavam vales para beber uísque nas boates. Vi
o Fritz Lang (diretor alemão de Metrópoles, filme de 1927) daqui pra ali; o
ator canadense Glenn Ford (do filme Gilda, de 1946), passeando de óculos ray ban; e o Roman
Polanski (diretor polonês de O Bebê de Rosemary, filme de 1968) na beira da
piscina do Copacabana Palace, pedindo para ver os ensaios da Mangueira e um
jogo de futebol do Flamengo.
Festival de Brasília do Cinema
Brasileiro
É a base de
tudo, conta com a sombra das pessoas que fundaram o curso de cinema da
Universidade de Brasília (UnB). O festival instalou a I Semana do Cinema
Brasileiro, firmando um compromisso cultural com o que era realizado no Brasil
no cinema na época e apoiando o que sobrou do Cinema Novo. Tratavam-se de uma
série de filmes que pareciam ecoar aquilo que ficou para trás como uma herança
de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. E que está aí até hoje, com uma
plateia superexigente, crítica, politizada, que vive na capital da República. O
Festival de Brasília é a nossa matriz, campo das reivindicações, do
desenvolvimento, da projeção do Cinema Brasileiro de um modo geral.
O País de São Saruê e a Censura
É um filme
que comecei a fazer em 1966 e que procura recompor um cenário que, de certa
forma, ainda existe, que são as relações de classe. O campesinato em torno de
terra, isso vinculado desde a descoberta do Brasil. Quem é dono de terra é dono
de terra, não quer abrir mão e trava uma brigar campal com as ligas camponesas.
Ele havia sido selecionado para o Festival e estava na censura. Dois dias antes
de sua exibição foi arrancado do evento e substituído por Brasil Bom de Bola
(dirigido por Carlos Niemeyer). Bom, fazia um ano do AI-5, as pessoas vaiaram
perigosamente, houve quebra-pau fora no cinema, com as pessoas atirando bolinha
de gude nas autoridades e tudo o mais. Deu que o Festival de Brasília seria
interditado por três anos.
O País de
São Saruê é uma das obras mais importantes de Vladimir Carvalho, um filme ícone
do festival
Relação com as novas gerações de
cineastas
Brasília tem
um lado documental que me pegou e também os alunos com quem tive contato quando
criei uma disciplina própria no curso de cinema da UnB . Parece que isso repercutiu
no espírito da turma que tinha facilidade de filmar.
Conterrâneos Velhos de Guerra
É difícil
escolher qual de minhas criações eu gosto mais porque a gente é meio pai de
todos. Agora eu acho que Conterrâneos… é uma súmula do meu trabalho. Ele faz um
sumário, uma ampliação ou continuação de O País de São Saruê (1971). Primeiro,
eu filmei o nordestino no seu habitat natural. Depois, filmei os nordestinos
fora, como se fosse um bando de judeus que tivessem migrado e que foram aqui
rejeitados por uma coisa da sociedade brasileira, de luta de classes. Esse
filme tem esse condão, essa capacidade de juntar tudo o que já fiz, os
costumes, a cultura, tudo um filme só. Não à toa chamei de Conterrâneos Velhos
de Guerra.
UnB
A gente deve
muito a pessoas que, em circunstâncias históricas, criaram o primeiro curso
regular de cinema do Brasil. Isso aconteceu em Brasília. Graças ao Darcy
Ribeiro, ao Pompeu de Souza, ao Nelson Pereira dos Santos e ao Paulo Emílio
Salles Gomes, o homem mais importante para pensar o cinema brasileiro. É uma
marca muito forte. Esse curso e a própria Universidade eram uma revolução no
ensino superior brasileiro, que é de uma importância enorme. Deu um caráter de
proficiência e profissionalidade em termo de criação de um festival de cinema
que reflete até hoje. O público de Brasília é um público muito especial,
crítico, independente. É uma herança. Uma herança que vem desses caras.
(*) Fonte: Lúcio Flávio – Fotos: Joel Rodrigues/Agência Brasília
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