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Caros leitores, apresento-lhes um trecho do meu romance UM, que acaba de ser publicado
























Foto: Divulgação / Por Geraldo Lima

Desviando o olhar um pouquinho para a direita, deparo-me com o porta-retratos onde, feliz, Ana ri iluminada. Não, não é um simples riso: uma gargalhada é o que explode na sua boca, tanto que ela dobra o corpo para trás sob o impacto da explosão de felicidade.
Desde então, é assim que a tenho visto todos os dias: romã madura escancarando-se à luz do sol. Lá estão os dentes que, sob o transe do amor, mordiam os meus lábios até sangrarem. Enquanto não ouvia um ai!, ela não os soltava. Em seguida, limpava o sangue com a ponta do dedo, levava-a à boca e, com um olhar de anjo endiabrado, degustava o líquido pastoso. Jamais vi nisso crueldade ou tara. Certo dia, no entanto, traído por meu passado religioso, lembrei-a de uma passagem do Velho Testamento que nos alerta: “Não comereis o sangue de nenhuma carne, porque a alma de toda a carne é o seu sangue; qualquer que o comer será extirpado”. Ela riu. Riu bem alto, escancarada, a boca abrindo-se como um abismo pronto para devorar o ser incauto, indefeso.
Não era por maldade ou escárnio, sei disso, que ela ria sempre dessas minhas tiradas bíblicas: é que tudo lhe parecia engraçado. — Você é tão religioso, um verdadeiro cristão, e eu sou pagã, meu amor, uma bruxa. Eu lhe respondia, — Tudo bem, sou mesmo um cristão relapso, pode me enfeitiçar. Ela ria mais ainda. E massacrava meus lábios feridos com o mais bárbaro dos beijos. Havia tanta avidez, tanta gula naquele gesto que, às vezes, sentia-me sufocado. Em meio aos beijos e afagos, deixávamos escapar um meu amor, minha vida, que vontade de te comer vivo!
Dizem que em todos nós há ainda algum resquício de canibalismo, que o espírito de civilização foi subjugando ao longo dos tempos, mas que costuma escapar da jaula da razão sempre que o amor mais louco se apossa de nós. Desejo de devorar o outro vivo, mastigar-lhe a carne, a alma, possuí-lo para sempre.


Geraldo Lima é autor dos livros A noite dos vagalumes (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, FCDF), Baque (contos, LGE Editora/FAC), Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora) e UM (romance, LGE Editora/FAC) Mantém o blog BAQUE (http://baque-blogdogeraldolima.blogspot.com).

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