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Joel Pires*

A inscrição na parede sempre aparecia quando, nas noites de lua, ela parava para fumar. Vício repugnante, pensava. Ainda acaba comigo. E se imaginava processando uma dessas companhias de cigarro, indústrias da morte. É assim que fazem nos Estados Unidos, confortava-se. Ela chegava a calcular os danos, inutilmente. Quem lhe poderia restaurar a saúde. Lutava contra um câncer há três anos. Lutar parece não ser a palavra mais adequada, no caso dela.

Nesses dias em que a luz invadia sua casa noite adentro, era inevitável tragar, como se tomada de intensa angústia. Consumia-se enquanto a lua derramava seu leite fértil. O olhar fixo na parede, a única em que não havia nada, nenhum quadro a refrescar-lhe a memória, nenhum móvel para se recostar. Apenas o branco como tela de suas projeções incontidas. Sabia quando ia acontecer, e não resistia mais. Deixava se levar pelas mensagens misteriosas e assustadoras que achavam, em sua parede, suporte de revelação.

Os registros sempre apareciam em letra cursiva e tomavam o espaço, como lauda virgem maculada pela escrita impertinente. Como pode?, pensava enquanto a fumaça se dissipava. Mas, dessa vez, uma nova caligrafia brotou da superfície. O vermelho invadiu a tela de concreto e argamassa. Relevos surgiram em sangue vivo. Levantou-se assustada com aquela imagem e tentava, em vão, enxugar as palavras rubras. A hemorragia não estancava. Dessa vez, as letras góticas desmanchavam-se escorrendo pela parede. E a mensagem esvaía-se antes de ser decifrada.

Cansada, já não podia lutar com as palavras. Os sinais derramados alcançaram o cigarro ainda aceso no chão. A lua preenchia a janela do quarto anunciando luz. Parceira de sua solidão, agora insurgia-se como mensageira de uma nova ordem. As marés, revoltas, converteram-se em águas mansas.

Por Joel Pires- Psicopedagogo, professor e colaborador do Jornal de Sobradinho

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