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ARTIGO: O jornal de papel não vai acabar, porque ele é matéria palpável da vida

*Conceição Freitas

Já houve quem fizesse um cálculo: o jornal vai acabar em 2043. Donos de grandes jornais no mundo inteiro se reúnem para trocar figurinhas e descobrir um jeito de adiar essa data por, pelo menos, mais um século. Filha de jornal que sou, tento me acostumar com a hipotética ideia de que, antes de eu morrer, morrerá uma de minhas casas, as folhas de papel impregnadas de letrinhas.

O jornal impresso é o cenário básico de Cidadão Kane. Na obra-prima de Orson Wells, toda a construção da infelicidade do megaempresário das comunicações percorre as folhas de papel-jornal. Mas, se a redenção de Kane está em Rosebud, a minha está nas barulhentas lâminas de celulose que me acompanham desde antes de eu conseguir decifrar o que dizia aquele tanto de letra colada uma na outra.

Vejo, porém, uma notícia no fim do túnel. Não sei se sou eu e minha saudade depois de morta ou se efetivamente há um movimento de retomada da estética do jornal impresso. Lojas de design vendendo almofadas e cortinas feitas de tecidos com o grafismo de Gutemberg. Camisetas, aventais com a mesma estamparia em preto e branco. Não me lembro se em Goiânia ou Brasília, encontrei dia desses uma loja de grife com vitrine feita de jornal.

Ao contrário do que o jornalista costuma dizer, o jornal do dia seguinte não serve apenas para embrulhar peixe. A tipologia impressa em colunas, entremeada de fotos, quadros e letras graúdas sempre teve uso estético — barquinho, chapéu, fantasias, trabalhos escolares, produções artesanais, intervenções plásticas, o papel-jornal foi uma das imagens mais recorrentes da sociedade industrial. E parece ganhar outro sentido na sociedade digital.

Dia desses, num impulso incontrolável, comprei seis almofadas cuja estampa são páginas do New York Times. Como se quisesse eternizar a fugacidade do jornal diário. Talvez venha daí meu desentusiasmo em relação às redes sociais e, por extensão, às plataformas da internet. A virtualidade me escapa das mãos — ela não tem cheiro, não tem tato, não amassa, não cola no meu corpo, não me convoca a dobrar e redobrar a folha de papel, a virtualidade é facinha e muito mais fugaz. Ela só existe na luminosidade impalpável da tela.

O papel-jornal confirma a materialidade do meu existir. Estabeleço com ele um corpo a corpo — folhas desobedientes espalhadas pelo chão nas manhãs de domingo. Quando o motoqueiro o atira na varanda, entra pelas paredes um trovão de papel e sinto o alívio de ter renascido para mais um dia.

Algo me diz que o jornal impresso não morrerá nem em 2043 nem em 3043. A virtualidade, elevada à máxima potência, vai nos fazer dar de cara com o vazio. Aí, amigos, vamos querer recuperar a materialidade do mundo real, com o que de belo e cruento há nele.


Por conceicaofreitas.df@dabr.com.br/ visto no correioweb

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